Mesmo com deficiências históricas, o Sistema Único de Saúde é garantia de universalidade e integralidade no atendimento. Há ainda muitas outras qualidades pouco conhecidas, que vão além dos problemas
Por Cristiano Bastos | Revista Gestor
Após ser diagnosticado com câncer na laringe, em outubro do ano passado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou tratamento quimioterápico no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Ao mesmo tempo, uma mórbida polêmica instaurou-se nas redes sociais (e em alguns setores da imprensa): por que Lula não foi tratar sua doença no Sistema Único de Saúde (SUS)? A sugestão, porém, perdeu força com a divulgação dos dados de atendimento do SUS – que, entre os serviços contratados, inclui justamente o Sírio-Libanês. De certa forma, o caso ajuda a sepultar uma errônea suposição, comumente apregoada, sobre a ineficácia, sob muitos aspectos, do sistema. De acordo com o Ministério da Saúde, 80% dos portadores de câncer no Brasil são tratados pelo SUS, que em 2010, ano do último balanço realizado, desembolsou R$ 1,8 bilhão para atender cerca de 300 mil pacientes.
Em seus quase 25 anos de existência, o Sistema Único de Saúde é sinônimo de inovações e, igualmente, de muitas contradições. Ao mesmo tempo em que contribuiu para a erradicação da poliomielite (paralisia infantil) no Brasil, presencia em pleno século 21 crianças e adultos morrendo de dengue. No mesmo país em foi desenvolvido um dos mais bem-sucedidos tratamentos públicos de AIDS do mundo, realizados integralmente pelo SUS, pessoas ainda esperam meses por consultas para doenças menos complexas. Uma rede com programa de transplantes que figura entre os maiores do planeta não significa, necessariamente, facilidade para fazer uma simples ecografia. Ainda que em meio aos problemas, há avanços incontestáveis. As moléstias do próprio SUS continuam sendo velhos e conhecidos problemas: carência de financiamento, gestão deficiente e dependência de serviços privados.
Criado pela Constituição Federal de 1988 para que toda a população brasileira tenha acesso ao atendimento público de saúde, o SUS tem muito a comemorar. Especialmente porque tem sido capaz de estruturar e consolidar um sistema público de saúde de enorme relevância e que apresenta resultados inquestionáveis para a população brasileira, aponta a cartilha SUS: avanços e desafios, editada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A dimensão dos números e a qualidade de certos programas atestam a gama de avanços obtidos. Êxito que pode ser constatado, de acordo com o estudo, nas perspectivas das estruturas existentes, nos processos de produção de serviços, em resultados sanitários e, principalmente, pela opinião da população brasileira, favorável ao sistema.
A cartilha SUS: avanços e desafios mostra uma organização complexa por meio de uma rede diversificada de serviços, a qual envolve cerca de seis mil hospitais, com mais de 440 mil leitos contratados e 63 mil unidades ambulatoriais. São mais de 26 mil equipes de saúde da família, 215 mil agentes comunitários de saúde e 13 mil equipes de saúde bucal prestando serviços de atenção primária em mais de cinco mil municípios. Os números anuais da produção de serviços de saúde impressionam: 12 milhões de internações hospitalares, mais de um bilhão de procedimentos em atenção primária à saúde, 150 milhões de consultas médicas, dois milhões de partos, 300 milhões de exames laboratoriais, um milhão de tomografias computadorizadas, nove milhões de exames de ultrassonografia, 140 milhões de doses de vacina, mais de 15 mil transplantes de órgãos.
A secretária Nacional de Saúde do Trabalhador da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Junéia Martins Batista, destaca que, no hemisfério sul, o Brasil, provavelmente, é o único país que possui um sistema universal e integral de atendimento à saúde. “Até hoje não conseguimos implantar o SUS como de fato deveria ser. Conseguimos, contudo, ter assegurado a integralidade e a universalidade da saúde, o que é uma grande conquista, desde o atendimento básico ao de ponta”, observa. O SUS, para Junéia, tem seus prós e contras. É um “projeto em construção”, diferenciado do que existe no restante do mundo. A questão da saúde – e o atendimento prestado aos trabalhadores – foi um dos temas que balizou a discussão durante a Primeira Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente, organizada pela CUT no mês de agosto, em Brasília, na qual Junéia coordenou mesas e debates.
Joaquina de Araújo Amorim, que coordena em Campina Grande (PB) o Centro de Referência de Saúde do Trabalhador, é assumida entusiasta do Sistema Único de Saúde, com o qual, ela diz, sua vida está “toda em consonância”. “Eu ensino SUS, vivo SUS e preciso de SUS. Eu sou 100% SUS”, apregoa. Uma das grandes revoluções trazidas pelo SUS, na avaliação de Joaquina, foi o fato de o Brasil ter evoluído de um modelo “privatizado e hospitalocêntrico” para um sistema de proteção à saúde da população. Para ela, acima de tudo, é preciso entender que o SUS é um “plano saúde”. Um plano que, na realidade, é pago antecipadamente ao Governo Federal, ao qual compete, entre outras atribuições, investimentos em infraestrura. “O SUS é um plano público de saúde que não tem carência e dá direito a todos. E que não é voltado apenas à assistência, mas que também visa uma importante questão, que é a vigilância em saúde”.
Professora da área de saúde pública na Universidade Federal de Campina Grande, Joaquina foi cedida à prefeitura de Campina Grande para implantar a Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador no município. Os planos de saúde, ao seu ver, trabalham apenas com a lógica do lucro. “E qual é o lucro do SUS? O lucro do SUS é o 'lucro social'. Ou seja, uma população saudável.” Há doenças, ela observa, que “ninguém quer tratar”, como, por exemplo, doenças crônicas ou degenerativas. “Os planos de saúde não querem tomar conta dessas doenças. Eles querem, na realidade, oferecer tratamento apenas às doenças que lhes dão oportunidade de ter alguma margem de lucro. As doenças crônicas e degenerativas são papel fundamental do SUS.”
Vanguarda – Algumas iniciativas do SUS destacam-se por estarem na vanguarda. Em 2011, a recém-criada Secretaria de Estado da Mulher (SEM/DF) apresentou ao Governo do Distrito Federal a proposta de adotar a vacinação contra o HPV (sigla de papiloma vírus humano, responsável por quase 100% dos casos de câncer no colo uterino). Em maio, o assunto entrou em discussão no Senado Federal, a partir da apresentação de projeto de lei da senadora Vanessa Grazziotin (PL 238/2011) cujo objetivo é promover a imunização de meninas e mulheres de nove a 40 anos de idade. O projeto foi batizado de “Vacinação HPV entre escolares de sete a treze anos no Distrito Federal: um projeto de longo alcance”. O motivo da precoce idade, explica a secretária de Estado da Mulher, Olgamir Amancia Ferreira, é que, para ser eficaz, a vacina deve ser oferecida a meninas que ainda não tenham mantido relação sexual, entre os 11 e 13 anos de idade. No DF, estatisticamente, a primeira relação sexual das meninas ocorre por volta dos 14 anos. O Distrito Federal é, assim, a primeira unidade da Federação a implementar a vacinação contra o HPV.
Olgamir diz que houve uma evolução das políticas públicas de saúde e das políticas direcionadas às mulheres desde os anos 1930 até os dias atuais. Progresso sobre o qual o SUS assume importante protagonismo. “Antes, a saúde da mulher se resumia às questões da gravidez e do parto; hoje, trabalhamos com o conceito de atenção integral à saúde da mulher”. De acordo com a secretária, atenção integral significa olhar e tratar a mulher como um todo. “Superamos a visão estreita sobre a mulher, baseada apenas em suas especificidades biológicas e nos papéis de mãe e cuidadora do lar e da família. A saúde hoje se volta para mulheres independentes, autônomas e emancipadas, que buscam cada vez mais a prevenção das doenças”, defende.
Para Izabela Pinto, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o grande desafio dos 25 anos do SUS foi, e ainda é, fortalecer o sistema e mostrar para a população que ele é sim uma alternativa e não a última opção para aqueles que não têm recursos. De acordo com a administradora, especializada em saúde coletiva, a criação do SUS acabou com um contingente de indigentes. “Antes, apenas aqueles que tinham carteira assinada tinham acesso à saúde pública. Com a criação do SUS, toda a população passou a ter direito à assistência médica, desde os mais abastados, que têm condições de pagar por um plano de saúde, aos menos favorecidos”, avalia Izabela.
Ela ainda ressalta o papel que o sistema tem na formação dos profissionais da saúde. Após a graduação em medicina, a maioria dos recém-formados faz residência em hospitais ou unidades de atendimento públicos. Durante esse período, eles recebem uma bolsa financiada pelo SUS. No entanto, a maioria deles, quando termina a residência sai do sistema público e vai trabalhar em hospitais privados. “A importância do sistema de saúde para a formação de recursos humanos como campo de prática e [fonte de] investimento são enormes. O frustrante é que esse investimento nem sempre dá retorno, tendo em vista que esses profissionais saem do SUS. É preciso de uma estratégia para segurar essa mão de obra que vai desde estímulos financeiros à estrutura física”, observa a representante da Abrasco.
Fábio Barros, especialista em política social e professor de serviço social da Universidade de Brasília (UnB), avalia que os problemas dos SUS advêm de um erro de concepção. Segundo ele, as falhas de financiamento e o subfinanciamento feito pela União não são um erro de implementação do sistema, mas algo da sua criação – resultado de uma política de limitação dos gastos sociais implantada na década de 1990. Essa deficiência causa outro desequilíbrio, na oferta de tratamentos. “Ao lado de casos de sucesso do SUS em programas específicos, que são mais adequadamente financiados, como o de transplante de órgãos e o de controle da AIDS, alguns serviços menos complexos são inadequadamente financiados e têm cobertura e qualidade insuficientes”, explica Barros. Segundo ele, há uma preferência pelos tratamentos de alto custo, enquanto o atendimento básico, que poderia evitar doenças mais graves, é deixado de lado.
Desconhecimento da população – O representante do Conselho Nacional dos Secretários Municipais (Conasems) de Saúde no Conselho Nacional de Saúde, José Eri Medeiros, lamenta o desconhecimento da população em relação à estrutura do SUS. Ele destaca os programas de imunização, o trabalho da Vigilância Sanitária e o atendimento de emergência oferecido no sistema. “As pessoas desconhecem, mas posso afirmar que todos os brasileiros usam o SUS. O Brasil possui a maior organização do mundo em termos de imunização. Somos internacionalmente conhecidos como um país que realiza as maiores campanhas de imunização em qualquer área. Por exemplo, o H1N1 não teve grandes reflexos aqui porque prontamente a sociedade, o governo e trabalhadores se uniram em uma ação intersetorial.”
Medeiros considera que “o SUS que aparece” é o SUS da dificuldade, real, mas que não se resume a isso. Ele acredita que um dos principais problemas – a demora do atendimento nos hospitais – poderia ser resolvido com a extensão do horário de funcionamento dos postos de saúde municipais. “Criança vai ficar com febre geralmente no final da tarde ou noite, que é quando a mãe sai do trabalho e vai para casa. Se a unidade está fechada, aonde ela vai levar o filho? No hospital, é claro. Ou seja, esses postos municipais de saúde atendem à população ou somente a um sistema, já vinculado a toda uma questão do trabalho no País? Isso precisa ser discutido”, questiona.
Mesmo admitindo as dificuldades, Medeiros reconhece os avanços do sistema, ressaltando o custeio dos transplantes que é feito pelo SUS e as milhares de consultas e exames que são realizados diariamente. No entanto, ele argumenta que esse não é apenas um avanço da saúde, mas da sociedade como um todo e afirma que ainda há muito a ser feito. “Não é a saúde que vai ter que mudar, é a saúde e a sua integração com todos os segmentos econômicos e sociais do País. Não existe mais essa defasagem de ser a 6ª economia do mundo e socialmente tão precário. Nossa economia cresceu, mas não me parece que os indicadores e os investimentos necessários na área da saúde cresceram na mesma proporção”.